Como Nutricionista e mãe de três crianças, sei bem como o tema alimentação segura para crianças com alergias pode ser desafiador, especialmente quando se trata de gêmeos(as). Cada criança é única, mas quando você tem duas com personalidades, preferências e, às vezes, alergias distintas, a organização e o cuidado precisam ser redobrados.
Neste artigo, vou compartilhar orientações práticas baseadas em evidências científicas para garantir uma alimentação segura e nutritiva para gêmeos com alergias, com um toque das minhas experiências profissionais e pessoais para inspirar você a tornar esse processo mais leve e funcional no dia a dia!
Entendendo as Alergias Alimentares em Crianças
As alergias alimentares afetam cerca de 6 a 8% das crianças globalmente, com maior prevalência em países desenvolvidos (Sicherer & Sampson, 2018). Elas ocorrem quando o sistema imunológico reage de forma “exagerada” a uma proteína alimentar, desencadeando sintomas que variam de leves (urticária, coceira) a graves (anafilaxia), podendo levar à morte. Em gêmeos, a gestão das alergias pode ser ainda mais complexa, especialmente se cada um apresenta sensibilidades diferentes.
Passo 1: Diagnóstico e Gestão das Alergias
O primeiro passo para uma alimentação segura é o diagnóstico correto. Sempre reforço nas minhas consultas a importância de levar as crianças a um pediatra e/ou um alergologista para realizar testes específicos, como testes cutâneos (Prick Test), exames de sangue (IgE específica) ou mesmo testes de provocação oral, quando necessário. Um estudo publicado no Journal of Allergy and Clinical Immunology (Boyce et al., 2010) destaca que o diagnóstico precoce e preciso é essencial para evitar reações graves e garantir a qualidade de vida da criança.
No caso de gêmeos, é comum que pais se perguntem se ambos terão as mesmas alergias, especialmente se forem idênticos. A genética desempenha um papel importante, mas mesmo gêmeos idênticos podem apresentar diferenças imunológicas. Por isso, é fundamental avaliar cada criança individualmente.
Dica prática: Mantenha um diário alimentar (seja anotando em um caderno ou no celular/computador) para cada criança. Anote o que elas comem, os horários e quaisquer sintomas que apareçam. Isso ajuda a identificar padrões e facilita a comunicação com o médico e o nutricionista.
Passo 2: Planejamento de Refeições Seguras
Planejar refeições para gêmeos com alergias exige organização, mas também criatividade. A exclusão de alérgenos não deve comprometer o aporte de nutrientes essenciais para o crescimento e desenvolvimento, como proteínas, cálcio, ferro e ômega-3. Segundo as diretrizes da Academy of Nutrition and Dietetics (2016), uma dieta balanceada para crianças com alergias deve ser cuidadosamente planejada para evitar deficiências nutricionais.
Estruture um cardápio semanal
Para facilitar o dia a dia, crie um cardápio semanal que contemple as restrições de cada criança, mas que também permita refeições compartilhadas. Por exemplo, se um dos gêmeos tem alergia a carne de porco e o outro é alérgico a frango, você pode optar por pratos baseados em proteínas alternativas, como peixe ou boi, que sejam seguros para ambos.
Busque receitas que sejam “universais”. Por exemplo, atendi recentemente duas irmãs que possuem alergia à proteína do leite de vaca (APLV), são celíacas (não podem consumir glúten) e tem alergia à carne de frango e porco. Então, prescrevi como sugestão um macarrão de arroz com molho de tomate caseiro (porque a maioria dos molhos e extratos de tomate tem contaminação cruzada com leite e/ou glúten) e almôndegas de carne moída bovina. É simples, nutritivo, elas amam macarrão e, o melhor, seguro para as duas. Para garantir o cálcio, já que não consomem laticínios, incluí bebidas vegetais fortificadas e vegetais verdes ricos em cálcio, como brócolis e couve.
Dica prática: Invista em alimentos naturalmente livres de alérgenos comuns, como arroz, quinoa, batata-doce ou inglesa, mandioca (inclusive, polvilho doce ou azedo) e frutas frescas. Eles são versáteis e reduzem o risco de contaminação cruzada.
Leia rótulos com atenção
A leitura de rótulos é uma habilidade essencial. No Brasil, a Anvisa exige que os fabricantes destaquem alérgenos comuns (como leite, ovo, trigo, soja, amendoim) nos rótulos, mas a contaminação cruzada nem sempre é informada. Um estudo de 2019 no Food Control (Begen et al.) mostrou que até 30% dos produtos alimentícios podem conter traços de alérgenos não declarados devido a falhas no processo de fabricação.
Quando seus gêmeos começarem a comer alimentos industrializados, passe a ler os rótulos de tudo o que comprar. Com o tempo, saberá quais marcas são “confiáveis”, mas continue checando, porque formulações podem mudar.
Vou citar um exemplo que aconteceu no meu trabalho (sou nutricionista da Merenda Escolar da Prefeitura de Franca). O macarrão espaguete de uma marca específica não tinha leite nem traços na composição, então enviávamos o item às crianças que tinham essas restrições alimentares. Porém, numa nova entrega do item, ao ler o rótulo, vi que agora tinha traços.
Assim, conversei com as outras 3 nutricionistas, atualizei as orientações nutricionais que enviamos às escolas (para que tanto a escola como a família dos alunos da rede pública, como também os Serventes de Merendeiros que preparam as refeições tivessem ciência que essa marca não poderia mais ser servida aos estudantes). O mesmo já aconteceu com rosquinhas de chocolate e coco, por isso a importância dessa checagem.
Além disso, ligue para o SAC das empresas quando tiver dúvidas sobre a segurança de um produto (ou mande um e-mail). No rótulo, costuma ter esses dados.
Dica prática: Ensine seus filhos, desde cedo, a reconhecer os alimentos seguros. Meus pacientes com APLV, mesmo tão novinhos, já sabem que leite e derivados são “vilões” para eles, assim como os alérgicos a soja, amendoim, ovo, etc.; entendendo que não devem consumir esses itens/preparações que os contenham na receita, o que dará mais tranquilidade aos pais em festas, passeios ou qualquer refeição consumida fora de casa (como na casa de amiguinhos, familiares ou escola).
Passo 3: Prevenção de Contaminação Cruzada
A contaminação cruzada é uma preocupação constante em casas com crianças alérgicas. Isso acontece quando um alimento seguro entra em contato com um alérgeno, seja por utensílios, superfícies ou até mesmo pelas mãos. Um estudo publicado no Allergy (2017) mostrou que até pequenas quantidades de alérgenos (como 1 mg de proteína de amendoim) podem desencadear reações em indivíduos sensíveis.
Em casa, adote algumas regras para minimizar esse risco:
- Utensílios separados: Tenha tábuas de corte e facas/demais utensílios/equipamentos exclusivos para preparar alimentos livres do que seus filhos tiverem alergia. Isso inclui demais talheres (colheres, garfos, escumadeiras, conchas, entre outros), copo do liquidificador, bacias, vasilhas, panelas, etc.
- Higiene rigorosa: Lave as mãos e limpe as superfícies antes de cozinhar, algumas vezes durante e antes de alimentar as crianças.
- Armazenamento seguro: Alimentos alérgenos, como biscoitos com leite (em casas de crianças com APLV), ficam em potes bem fechados e em prateleiras separadas. Você também pode fazer o inverso (que acho o mais viável): tanto na geladeira, congelador e nos armários/despensa, deixe os itens das crianças alérgicas (ex: no caso de celíacos, bolachas sem glúten, macarrão sem glúten, entre outros) em prateleiras/partes separadas.
Sei que, no começo, achará exaustivo seguir tantas regras, mas com o tempo vira rotina. Futuramente, até as crianças te ajudarão a “fiscalizar” a cozinha, o que torna tudo mais leve e até divertido!
Dica prática: Use cores para diferenciar utensílios. Por exemplo, a tábua verde é só para alimentos seguros, enquanto a vermelha é para os outros. Isso ajuda até as crianças a entenderem o sistema.
Passo 4: Envolvendo os Gêmeos no Processo
Incluir as crianças no cuidado com suas alergias é uma forma de empoderá-las e reduzir a ansiedade. Estudos mostram que crianças que compreendem suas restrições alimentares desde cedo têm menos chances de consumir algo perigoso por engano (Sampson et al., 2014).
Com seus gêmeos, comece a envolvê-los na cozinha desde cedo (3 anos é uma boa idade). Elas adorarão “cozinhar” com você, seja amassando bananas para um bolo ou escolhendo vegetais no mercado. Esses momentos não só criam memórias preciosas, como ensinam que comida segura pode ser gostosa e divertida.

Dica prática: Faça da cozinha um espaço de aprendizado. Explique (de maneira simples) por que certos alimentos são evitados e mostre alternativas saborosas. Com crianças que já saibam ler, fazer um jogo como “detetive do rótulo” pode tornar a leitura de ingredientes mais animada.
Passo 5: Lidando com o Aspecto Emocional
Gerenciar alergias alimentares em gêmeos não é só uma questão prática – também é emocional. Como mãe/pai, a gente se sente frustrada(o) por não poder oferecer aos filhos todos os alimentos que vemos outras crianças comendo (principalmente, guloseimas em festinhas infantis). Também já percebi que elas (crianças com alergias alimentares), às vezes, se sentem “diferentes” em festas ou na escola. Um estudo no Pediatric Allergy and Immunology (2020) destacou que crianças com alergias alimentares podem enfrentar desafios psicossociais, como isolamento ou bullying.
Para contornar isso, sempre converse abertamente com elas sobre suas alergias, reforçando que seus filhos são especiais, mas não menos capazes de aproveitar a vida. Também invista em alternativas criativas (como cupcakes sem glúten- no caso de celíacos, brigadeiros sem leite- no caso de APLV, bolo sem ovo- alérgicos a ovo) para festas de aniversário, que fazem sucesso até com os amiguinhos.
Dica prática: Crie tradições alimentares próprias. Para pessoas com crianças com APLV: Em casa, tenha a “noite do sorvete caseiro”, onde faça sorvetes de frutas que são seguros e deliciosos, sem leite. Celíacos: “noite da pizza caseira”. Alérgicos a ovo: “piquenique especial”, levando para um parque, uma praça ou fazendo mesmo na sala ou garagem de casa tudo sem ovo. Isso ajuda as crianças a se sentirem incluídas.

Cuidar da alimentação de gêmeos com alergias é, sem dúvida, um desafio, mas também uma oportunidade de aprendizado e conexão. Como nutri, reforço a importância de um planejamento cuidadoso, com base em evidências científicas, para garantir a segurança e a nutrição adequada. Como mãe, aprendi que paciência, criatividade e diálogo são aliados poderosos para transformar esse processo em algo natural e até prazeroso.
Se você também é pai ou mãe de gêmeos com alergias, saiba que não está sozinho. Com organização e carinho, é possível oferecer uma alimentação segura e cheia de sabor para seus filhos. E, quem sabe, criar memórias inesquecíveis ao redor da mesa?
Leia também: Alergias Alimentares em Gêmeos: Como Identificar e Lidar com os Sintomas
Atenção:
Além do nutricionista, o pediatra, especialmente o alergologista pediátrico, desempenha um papel crucial no tratamento de crianças com alergias alimentares. Ele é responsável por diagnosticar a alergia por meio de exames como testes cutâneos ou de sangue, identificar os alérgenos específicos e orientar a família sobre os riscos, como a possibilidade de anafilaxia. Trabalhando em conjunto com o nutricionista, o pediatra alergologista monitora a saúde da criança, ajusta o tratamento conforme necessário e garante que o manejo da alergia seja seguro e eficaz, protegendo o bem-estar e o desenvolvimento dos pequenos.
Caso você precise de auxílio para planejar a alimentação de crianças com alergias alimentares, saiba que essa tarefa deve ser feita por um nutricionista, pois ele é o profissional qualificado para entender as necessidades delas e criar um cardápio seguro, nutritivo e que evite riscos graves, como reações alérgicas.
No Brasil, a Resolução CFN nº 600/2018, do Conselho Federal de Nutricionistas, estabelece que só o nutricionista pode prescrever dietas (ainda mais se considerarmos esse caso), levando em conta a saúde, as restrições e os perigos que alérgenos podem trazer. Por isso, para essas crianças, o acompanhamento do nutricionista é essencial – nada de arriscar com ideias genéricas que viu em redes sociais/sites de pessoas sem o conhecimento técnico, porque a segurança delas depende de um plano bem feito e personalizado!
Referências:
- Sicherer, S. H., & Sampson, H. A. (2018). Food allergy: A review and update on epidemiology, pathogenesis, diagnosis, prevention, and management. Journal of Allergy and Clinical Immunology, 141(1), 41-58.
- Boyce, J. A., et al. (2010). Guidelines for the diagnosis and management of food allergy in the United States. Journal of Allergy and Clinical Immunology, 126(6), S1-S58.
- Academy of Nutrition and Dietetics. (2016). Position of the Academy: Nutritional management of food allergies.
- Begen, F. M., et al. (2019). Allergen risk assessment and management in food manufacturing. Food Control, 104, 231-239.
- Sampson, H. A., et al. (2014). Food allergy: A practice parameter update. Journal of Allergy and Clinical Immunology, 134(5), 1016-1025.